Diego de Santos

Viagem ao vão

26/10/2019

Viagem ao Vão

 

O aviso sonoro é repetido ao longo de toda a viagem, a cada parada em uma nova estação: “Atenção para o espaço entre o trem e a plataforma”. Diariamente ele parece insistir em chamar atenção, em meio ao entra e sai dos vagões, para o que aparentemente é só um intervalo, um lugar de passagem, um espaço vazio entre dois pontos: o vão. Depois de inúmeras idas e vindas pelos trens metropolitanos do Rio de Janeiro, o que Diego de Santos nos propõe em sua primeira individual no Rio de Janeiro é justamente o contrário. O vão é lugar onde se mergulha. Ao longo dos últimos 15 anos, o artista, nascido em Caucaia (CE), vem estruturando sua poética na observação atenta do que está ao seu redor, a partir de um olhar e uma escuta sensíveis. Sua produção chama atenção para fenômenos urbanos, ignorados, negligenciados, invisibilizados pelo cotidiano, e sua construção não só arquitetônica, mas especialmente histórica, econômica, política e social.

Em Viagem ao Vão, instalações, objetos e desenhos realizados entre o ano passado e este ano tomam sua experiência de residir e se deslocar pelo Rio de Janeiro como ponto de partida. O projeto tem como foco investigativo a paisagem atravessada por trens urbanos, espaço que compreende a faixa de lastro (camada de pedras que serve para dar estabilidade aos trilhos em relação ao solo e aos trens em movimento) e áreas da cidade que margeiam essa faixa de domínio da ferrovia.

Hoje, os trens cariocas operados pela Supervia transportam uma média de 750 mil passageiros por dia, que viajam em 204 trens, com velocidade máxima de 90 km por hora, por uma malha de 270 quilômetros e 104 estações, ao longo de 8 linhas que conectam 12 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro ao centro da cidade. Essa malha complexa começou a se estruturar ainda na metade do século 19, quando o governo imperial dava início à construção da primeira seção de uma estrada de ferro que ambicionava promover, a partir do Município da Corte (a cidade do Rio de Janeiro), uma completa integração do território brasileiro sobre trilhos.

O início da República marcou uma gradual mudança de interesse (e investimentos) públicos. Nos anos 1950, o plano de crescimento rápido do então presidente Juscelino Kubitschek, intensificou o investimento em rodovias (e na indústria automobilística). O processo de construção de ferrovias foi considerado lento demais para fazer o Brasil crescer “50 anos em cinco”, como prometia o slogan do seu governo. Foram os anos JK que trouxeram para o imaginário popular a crença de que a rodovia era um indicador de modernidade, enquanto a ferrovia virou símbolo do passado que se queria deixar para trás.

Diego começou a usar os trens metropolitanos quando ainda não morava no Rio de Janeiro, mas vinha de tempos em tempos visitar uma tia e usava a linha que liga a Central do Brasil a Gramacho para circular pela cidade. Anos mais tarde, já residindo aqui, se tornou usuário do ramal Deodoro. Nas inúmeras idas e vindas realizadas desde 2017 foi percebendo através das janelas dos vagões como a paisagem mudava conforme se distanciava do centro. Do lado de fora, o muro usado como proteção ao separar o espaço urbano dos trilhos vai diminuindo de altura até desaparecer.

Esse processo é inversamente proporcional ao aumento da precariedade dos espaços público e privado, com arquiteturas deterioradas pelo tempo e falta de investimento, gambiarras que tentam garantir alguns serviços (como os gatos na rede elétrica), e novas construções que já nascem precarizadas, feitas muitas vezes com sobras de materiais, como tapumes e placas de sinalização de desvio. A monotonia do cinza dos muros e das pedras que estabilizam os trilhos por onde passam os trens, é quebrada pelo colorido das frases que foram, e ainda são, escritas pelo caminho. Ao longo da viagem elas revelam desejos de uma vida melhor, o amor pela família, a demarcação de território e códigos de comportamento, além de algumas “sabedorias populares”.

Enquanto isso, do lado dentro, o que para uns é meio de transporte do trabalho para casa, para outros é local de trabalho. Vende-se de tudo dentro do trem: utensílios para facilitar as atividades domésticas, pequenas distrações para a fome, remédios, pequenas tecnologias. As estratégias para chamar atenção dos potenciais clientes passam pelos mais diferentes discursos e os mais variados tons de voz.

Pessoas, imagens, paisagens, experiências, sons e materiais encontrados e coletados nas inúmeras viagens que fez nos trens metropolitanos são matérias e materialidade das obras que Diego de Santos reúne nesta exposição. Em conjunto, apontam para questões caras para o artista, como a noção de morada, e suas re/desconfigurações em processos de transformação social e histórica da paisagem. Ver o conjunto de trabalhos de Viagem ao Vão faz pensar na necessidade e urgência de outras possibilidades de leitura para a frase “Atenção para o espaço entre o trem e a plataforma”. Enquanto para o sistema sonoro dos trens “atenção” é alerta de perigo, tome cuidado, afaste-se; para Diego de Santos, o chamado de atenção é na verdade um convite para olhar de novo; para chegar mais perto para ver outra vez, para ver melhor.

 

 

Fernanda Lopes

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