Na borda do mundo
No dia 11 de março de 2020 o governador do Rio de Janeiro publicava o decreto autorizando a
adoção do isolamento e a quarentena da população.Após dois anos de convívio com o coronavírus,
os dias de confinamento mais radicais para parte privilegiada da população parecem uma conversa
arrastada entre a brutalidade do real e a desmesura da ficção.
Eloá Carvalho faz parte de uma geração de artistas para qual a escolha de um meio – a pintura – está
sempre enredada em múltiplas conexões com outras práticas: o desenho, a fotografia, o arquivo, a
literatura, o vídeo. Sua pesquisa de arquivo, por exemplo, em instituições como o MAM-Rio e a galeria
Ibeu, já foi objeto de exposições da artista. Essas pesquisas de imagem e texto são força motriz para
Eloá Carvalho exercitar seu trabalho e forjar um pensamento singular para sua prática. No seu
fazer-se pintora, traça uma trajetória que amalgama prática e teoria.
Na borda do mundo possui um recorte temporal e espacial do nosso passado recente, o
confinamento. Mas, ao invés de estarmos diante de uma paisagem doméstica claustrofóbica, as
pinturas e desenhos da artista nos puxam para o lado de fora… Fora da sua casa. Da nossa casa. Eloá
Carvalho, confinada,se debruça sobre janelas,suas e alheias,reais e virtuais, na tentativa de antever
outros horizontes, além de sua própria casa.Aqui, a artista nos entrega seu manual de sobrevivência
para tempos pandêmicos.
A série Vistas é um trabalho paradigmático.A artista pediu para um grupo de pessoas fotografarem da
forma que quisessem as vistas de suas janelas: O que estariam vendo Marie, Laércio,Ana, Isabel,
Clara? – se pergunta. Ela trabalha sobre o material recebido e responde aos envios do grupo com
desenhos de cada uma dessas vistas exteriores.A artista, ao desenhá-las, toma para si as paisagens
recortadas por essas várias janelas. São seus, também, esses horizontes. Carvalho parece dar um giro
duplo na ideia de paisagem como deslocamento do olhar.
1 O olhar de Eloá depende do que olham os
outros.
Há uma sabedoria de vida no método da artista. Sua porção de mundo, definida pelo perímetro
doméstico no confinamento, foi ampliada pelo troca-troca de olhares. Suas paisagens se constroem,
aí.
Condições de equilíbrio, Reserva de futuro, Estar fora, Debruçado dão continuidade aos seus
exercícios relacionais. Eloá pediu ao mesmo grupo de pessoas da série Vistas que lhe narrassem
imagens, tirassem fotos, enviassem letras de música, partes de livros, tentando abarcar as sensações
de colocar o pé na rua pós-confinamento. Cada pintura tem como ponto de partida os envios desses
relatos em formatos diversos. Sua investigação pictórica continua articulando dados da representação
– coisas reconhecíveis ao nosso redor –, com o peso das pinceladas de tinta branca que abocanham em camadas grande parte da superfície da tela. Seu incansável exercício de fazer o branco exibir todas
as suas nuances reafirma o que certa vez escreveu Daniela Name:“o branco de Eloá está grávido de
azuis,rosas, amarelos, cinzas.”
O espaço em branco na superfície das telas, nas páginas, nas paredes sempre demandou aos artistas
mais angustiados um projeto rápido (se possível) de ocupação. Nas pinturas de Eloá Carvalho, o uso
abusado do branco reivindica o não visto, o não dito das paisagens.A paisagem está
aí.
Debruçado, essa pintura enigmática que é o menor trabalho desse conjunto de paisagens me recorda
a fita de Moebius e sua relação com a nossa capacidade de imaginar. Conseguir estar fora, ainda que
confinada. Materializar outros lugares, ainda que confinada. Essa escada que nos dirige para uma zona
acinzentada, desenhando sua relação ascendente com o exterior pesado de branco e de árvores,
apenas. Não há ninguém lá fora.As paisagens de Eloá arrastam consigo a noção de topologia como um
espaço limite, mas sem fronteiras – a ser construído por cada um de nós. Estamos debruçados sobre
a concretude do mundo, do que reconhecemos, e diante do ponto de vista da artista, na construção
de suas paisagens.
Dentro de casa, Eloá Carvalho opta por pintar vasos de plantas suas, e das imagens de plantas
postadas no instagram de seus amigos. São vidas crescendo confinadas em pequenos vasinhos. Essas
plantas domesticadas se parecem conosco em tempos pandêmicos. Precisam da luz do sol, água e
estrume. São marcadores da passagem desse tempo nebuloso. Foi preciso trazer o verde, ainda que
domado, para o lado de cá, de dentro.
Dentro de casa, abrem-se as janelas do zoom de sua sala de aula do mestrado na Uerj. Essas janelas
também são nossas. Essas pessoas são nossos amigues. Pequenos retângulos que tornaram possíveis as
festas de aniversário, uma conversa entre amigas, as aulas na universidade, as reuniões de trabalho.
Tudo isso mediado pela tela de computador, outro retângulo, outra janela, entre nós e o mundo.
O livro Looping e as duas pinturas Bresil são os únicos trabalhos que têm como ponto de partida um
momento anterior à pandemia. Em 2019, a artista francesa Marie Quéau gravou um vídeo das mãos de
Eloá Carvalho jogando flores de papagaio no mar carioca, à noite. Os desenhos do livro e as duas
pinturas, produzidas em 2020,se baseiam nessa cena em movimento. Os três trabalhos são
afirmações dos laços de amizade, entre Marie e Eloá. Neles, a linguagem entre as duas artistas
inventa-se para além da língua. Desenhos das mãos da artista,segurando a planta, definem todo o
trajeto de 360 graus, percorrido ao redor do livro aberto e sanfonado. Esses desenhos fogem da
reprodução mimética dos frames do vídeo. São sinais de um gesto que não conseguimos decifrar. Nos
espaços vazios, construídos entre os desenhos das mãos de Eloá e da planta, está o desfecho
expositivo – de uma topologia construída sempre em companhia do outro, da amiga além-mar.
Encontrar o limite,sem fronteiras, pode ser isso… Estar na borda do mundo, confinada, inventando
espaços no desenho e na pintura para estarmos juntes. Um manual de sobrevivência para tempos
pandêmicos.
Natália Quinderé