Hiato
Para além da definição ortográfica, onde é usada para designar o encontro de duas vogais de sílabas distintas pronunciadas em emissões sucessivas da voz, a palavra “Hiato”, do latim hiatus (abrir a boca), designa também lacuna, descontinuidade, intervalo, interrupção, falha, e ainda fendas e orifícios do corpo humano.
É no espaço entre as coisas que está o interesse de Pedro Cappeletti. Dobras, reentrâncias, intervalos, ausências e resquícios de uma ação, ou de um objeto que já não está mais presente, são uma constante em seus trabalhos. Para evidenciar essas ausências, as matérias sempre estão bem presentes. É da relação de adesão ou de repulsa entre elas, muitas vezes forçadas a aderir ou se moldar a mercê de uma força física, que se faz ver esse espaço entre.
O conjunto de trabalhos que o artista apresenta agora na C. galeria, estabelece uma reflexão sobre este “hiato”. São esculturas, vídeo e desenhos onde o que é forma e o que é informe se encaram, e encenam uma luta constante.
Nos desenhos, imagens de cones são reconhecíveis, mas não tem mais integridade formal. O artista os executa como uma impressão fora do registro, desconstrói as formas do objeto, para construir lacunas, buracos em sua estrutura. Faz com que esses cones de transito pulsem em uma nova imagem inquieta, percam peso e ganhem leveza.
Já na série de objetos, os cones ganham peso e volume, como se voltassem à uma geometria modular ancestral, passível de construir qualquer elemento por retirada de matéria em um processo escultórico. Dispostas no chão, ao mesmo modo que os cones estão dispostos no desenho, são exercícios de contenção e vazamento, onde um cubo encharcado de tinta preta é atado à um cubo encharcado de tinta branca. A gravidade se encarrega do resto, a tinta escorre sem controle desenhando pelo cubo branco, assim como escorre pela parede e piso da galeria em um outro trabalho de princípio próximo, onde o cubo encharcado de tinta está sozinho atado contra parede.
Assim o artista faz desenho e escultura coexistir em seus trabalhos. Mesmo em suas ações, instalações e vídeos, desenho e escultura se fazem presentes. É como no vídeo onde um cubo preto se debate contra a maré, tenta adentrá-la e é expelido constantemente, como se a paisagem repelisse aquela geometria, aquele corpo estranho. É o único momento da exposição onde a forma geométrica se mantém dura, integra. Mesmo que sempre vencida pela paisagem, a geometria triunfa.
O vídeo é um desenho sobre a paisagem, se em toda a exposição a forma é mole, maleável ao mundo e as ações do artista, no vídeo a paisagem é mole, se molda à forma do cubo, a engole para depois rejeitá-la. É com a presença da matéria que Pedro Cappeletti faz ver ausências, os conflitos, e as forças que se fazem presentes mesmo sem serem visíveis. É a partir da adesão da unidade modular das coisas, e das forças as quais elas são submetidas, que Pedro fala das diferenças entre elas, e da individualidade de todas as coisas.
Douglas de Freitas
Douglas de Freitas é curador de artes visuais Museu da Cidade de São Paulo, onde realizou a performance de Maurício Ianês, as instalações de Tatiana Blass, Lucia Koch, Iran do Espírito Santo, Felipe Cohen, Laura Belém e José Pedro Croft na Capela do Morumbi; e a instalação de Sandra Cinto, na Casa do Sertanista. Realizou a exposição ‘instável’ em 2012 do Paço das Artes (SP). Foi contemplado com o Prêmio PROAC artes visuais, em 2014, com intervenções públicas de Débora Bolsoni, Wagner Malta Tavares e Laura Vinci. Foi um dos seis finalistas do prêmio Marcantonio Vilaça na categoria curadoria. Realizou este ano na Chácara Lane a exposição ‘Guerra do Tempo’ de Marilá Dardot, uma seleção de obras dos últimos 15 anos de trabalho da artista, e atualmente trabalha na exposição ‘Arte à mão armada’ da artista Carmela Gross, com abertura em agosto de 2016, também na Chácara Lane.