Ausência: aguda presença
No belíssimo livro Ensaios sobre Fotografia, Susan Sontag assinala o aspecto
central do fotográfico: participar da mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade
das pessoas e das coisas, testemunhar a passagem inexorável do tempo. O
trabalho de Piti Tomé se constitui também ao redor do fotográfico, utilizando-se
da fotografia em um campo expandido, operando torções e experimentações
com a imagem.
Nesta exposição individual, Piti Tomé traz séries de trabalhos inéditos que
abordam também a dimensão do vazio e a solidão na contemporaneidade, com
fotografias feitas a partir de satélites, printscreens, junkmails e
propagandas. Num uso talismânico das imagens, a artista explora formas
alternativas de fotografar, de pesquisar a imagem e o desenrolar da própria
história da fotografia.
Ao apropriar-se de fotografias e imagens, Piti Tomé reinventa o mundo e cria
uma nova cartografia explorando eixos estruturais do sujeito e de sua relação
com o tempo, extraindo pulsação onde o que havia era um aspecto mortuário
das imagens. Ela introduz um aspecto novo na contemplação de nossos
escombros: suas imagens ensinam a olhar face a face para o abismo sem ser
por ele destruído.
Através de narrativas porosas ao mistério, a artista apresenta o sublime como
uma pungente revelação: não há como separar o belo do terrível. Resta-nos
reescrever o lugar da estranheza e prosseguir em íntimo diálogo com ela,
deixando entrever
na relação com a imagem e com a linguagem o
estranhamente familiar, o familiarmente estranho, o sinistro que vem a lume e
joga seu clarão na obscuridade da existência, de tal forma que nossos sentidos
possam ser atingidos por uma “inquietante estranheza”.
A Câmara Clara, livro absolutamente transtornante de Barthes, é sobre
fotografia e, também, sobre sua relação com a mãe e seus últimos dias de
vida. Impactado pela mesma temática abordada por Piti Tomé – a construção
da identidade, os laços fundantes ou familiares e a efemeridade – Barthes
vivencia uma espécie de êxtase fotográfico com a Fotografia do Jardim de
Inverno, em que sua mãe aparece quando tinha cinco anos de idade. A partir
da apropriação dessa imagem, ele vive uma experiência de fé, amor e loucura
e se dedica obstinado à palavra que se debruça no abismo-parapeito de uma
fotografia, no rastro extraordinário do silêncio que vive entre a imagem e a
palavra.
Ao pensar nas questões de apropriação e autoria, Piti Tomé evoca o feminino
através da insubmissão. No campo ampliado das imagens e das palavras, ela
reescreve a expressão de uma intimidade que se encerra em uma
subjetividade, representando a figuração da solidão. Uma solidão que ousa
pronunciar seu nome, não mais na vulnerabilidade dos processos de
identificação, mas no reconhecimento agudo de que o outro é sempre
vacilação. A solidão que é reconfigurada pelo trabalho artístico aqui proposto
não é mais a simples privação, mas além de uma hipersensibilidade à ausente
presença do outro, a solidão mede – tal qual uma sonda – a intensidade do
desejo ardente que não responde ao chamado de maneira simétrica. E é onde
o outro responde enigmaticamente que podemos nos confrontar com a
dimensão da negatividade. A solidão é um sentimento da presença de
ausência.
As imagens – muito além das imagens –que a artista apresenta, apoderam-se
de nós como miragens e fantasmas, forçam-nos a reprogramar o olhar por
inteiro ao inserir elementos misteriosos e opacos que num jogo sutil e vigoroso
nos leva a reescrever o mundo como um lugar de tremor, aposta, balbucio e
fúria, que, na escrita aguda de Maria Gabriela Llansol, “é a minha própria casa,
mas creio que vim fazer uma visita a alguém”.
Bianca Dias