Com o peso das cores, do discurso e da metáfora é que Rafael Bqueer refaz os preceitos de sua arte e utiliza as obras como um passo adiante do que antes fora dado como destino. Em meu primeiro contato com o trabalho de Bqueer nas artes, “Alice e o chá através do espelho”, despertou-me para um fazer-saber que samba entre o insólito e as apoteoses carnavalescas. E em “ Boca que tudo come” as alegorias exuberantes dos barracões são transportadas para a galeria como alegorias da própria língua e confirmam sua presença no trabalho como algo vasto de muita suntuosidade e de potencial transformador do material.
Como um movimento propositivo, as obras dão forma a uma boca num corpo sem esfíncter. Sem o músculo que prende e evita que fluidos, saberes, que o chorume do luxo se esvaiam. Tudo que entra no corpo é móvel e pode ser devolvido, mas já transformado pelo que há de transitório e permanente nessa passagem. O comer, o saborear, o digerir, o respirar, o falar são atributos que fazem parte de um princípio, uma boca que possui e guarda mistério e não se limita aos lábios e nem à faringe.
Assim também se apresenta Exu, em constante movimento desbravador, orgíaco, do impossível, que cobre e descobre o mistério das linguagens, que se articula nos encontros, nos desencontros e que se revela nas alegorias das encruzilhadas.
É a gênese e uma boca com fome que não se sacia. Pela boca
de Exu tudo passa. A fome de Exu não cessa, pois é pela sua boca que tudo acontece, conflui, compartilha. Na boca de Exu
se instaura o mistério de todo acontecimento vivo. Engole para devolver de maneira ambívia! O que ultrapassa a ideia de antropofagia, pois é muito mais antigo e é na diferença que o mistério acontece.
Sinto este trabalho como uma prática de desuniformizar, de criar também uma trama de propósitos, de refazer os tecidos da linguagem com nós. Um passo de uma largada que se pode dar nas instituições, mas, principalmente, nos encontros com outras artistas, costureiras, nos barracões e no cotidiano de um corpo movediço, cheio de ilustração e com uma boca que tudo come.
Paulete Lindacelva