Vítor Mizael

Arapuca

03/08/2019

Acompanhar a montagem de Arapuca, de Vítor Mizael, induz a leituras isoladas de
cada parte da exposição, distribuída em três salas. A começar por aquela cujas paredes
foram cobertas de tinta rosa para instalar a fotografia de uma cena montada com
arranjos de folhagens, sobre fundo de mesma cor, Arapuca converge exuberância,
ameaça e força espiritual. Responsável por ampliar o espaço da sala, a cor funciona
como estratégia de atração, requerida para atingir a área em que lanças douradas,
embutidas ao centro da composição de arranjos que constituem a imagem, parecem
tomadas das mãos de Midas, aquele que converte tudo o que toca em ouro. No
entanto, instaladas junto das plantas espadas-de-são-jorge, as lanças fazem referência
direta a Ogum, orixá de cabeça do artista que protege seus ancestrais, devotos da
umbanda desde tempos remotos. Contudo, apesar de testemunhar tal devoção,
passada aos seus familiares desde seu bisavô, o artista reconhece o quanto ela era
preservada em círculos restritos, em "uma fé não assumida abertamente, mas à qual
recorriam quando alguma adversidade os atingiam." Situados entre o "mágico e o
medo do julgamento social", evitavam retaliações recorrentes na ocasião em que as
últimas gerações de sua família praticavam os ritos da religião brasileira. Assim, diante
de um cenário que destila ódio à diferença, a sala-rosa, na exposição Arapuca, se
transforma em local de prece ao orixá protetor, com sua presença evidenciada pelo
atributo iconográfico que reproduz a maneira com que imagens religiosas do
cristianismo circulavam nos primeiros séculos da Era Medieval, período em que a
imagem do cordeiro foi assumida por aquela do profeta, atravessando assim o cenário
mordaz de intolerância religiosa que afligia a população devotada ao Cristo. O retorno
a esse estado de espírito quer corromper conquistas recentes, com arapucas instaladas
em campos previamente demonizados, forjados para capturar forças ancestrais não
hegemônicas. Sua presença aparentemente vigorante encontra, no entanto, uma
resistência sempre maior, que não se curva ao mando de silêncio. O grito encontra a
reza na exposição de Vítor Mizael, que acessa diferentes formas de vida e
racionalidades. É também fundamental mencionar o fato de a sala-capela do orixá
reproduzir as cores da nova bandeira do país de "Marias, Mahins, Marielles, malês":
em verde e rosa, a capela espalha ecos do samba-enredo da Mangueira que deu luz
aos "versos que o livro apagou", o mesmo que propagou a invasão de 1500 como
descobrimento. Porta-vozes da "história que a história não conta", essas cores aludem
à insurreição que batalha pelo "país que não está no retrato", o que a sala-rosa, em
Arapuca, retoma enquanto simulacro da densa floresta ameaçada pela política
devastadora.
Antes de adentrar a sala-capela, os que passarem pelas portas que conectam as salas
da exposição poderão ver desenhos de serpentes instalados acima e ao lado do topo
dos batentes. Outros, impressos sobre revestimentos cerâmicos, simulam pedras e
levam a pensar em fósseis do tempo presente enquanto convivem com pássaros
pousados sobre seus corpos. Não há medo de extermínio nessas imagens. Tampouco

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funcionam como alegoria do pecado original ou reconhecem o subjugado e o
subjugador. Instalados ao lado e acima das portas, os desenhos parecem replicar
movimentos não capturados pelo escultor anônimo que reproduziu, a partir de um
original grego, a escultura Laocoonte e seus filhos (c. 50 d.C.), conservada pelo Museu
do Vaticano. Inclusive, impedido de alçar voo, um pássaro mantém as asas abertas
entre as partes do corpo de uma serpente, reproduzindo, em certa medida, o
movimento do sacerdote de Apolo, tomado de assalto na cena que antecede o
momento em que é atingido pela cobra.
Feito corpos mantidos em cativeiro pelo instrumento de captura que retira o direito à
vida, serpentes são pintadas sobre um conjunto de azulejos singulares, adquiridos em
lojas conhecidas como cemitérios. Trata-se de peças fora de linha, mortas depois de
terem sua linha de produção industrial interrompida. Em Arapuca, essas pinturas
avizinham-se da capela de Ogum e dos fósseis do tempo presente. É importante notar,
do mesmo modo, que as margens das pinturas dão a ver a cor da fórmica que reveste
o compensado sobre o qual o artista instalou os azulejos. Ao distribuir essas arapucas
pelas salas da exposição, a semelhança da estrutura das pinturas com a cor da sala-
capela vibra sutilmente nos outros ambientes e tinge o branco impoluto das paredes.
Com isso, Arapuca também traz para o mesmo espaço a figuração de estruturas
engenhosas, que sustentam a promessa de progresso com extrativismo desenfreado.
Entrelaçadas por arabescos, grafismos e geometrias, as serpentes atravessam e
negociam com o binômio natureza e cultura, como se o primeiro fosse a forma e o
segundo, o fundo das pinturas. Assim, a ruína deixaria de ser entendida apenas como o
conjunto de escombros ou a destruição parcial de edificações, para ser também a
morte da repetição de padrões. Cada azulejo seria a figuração de sua própria ruína,
sobre os quais o artista insere as serpentes, retrato do Antropoceno, preso em sua
própria estrutura amordaçada, embrenhado em objetos mortos. Neste contexto, a
ameaça que caracteriza o retratado é diminuída, frente ao fato de que sua existência
põe em risco a si mesmo. Seu bote mortal e imprevisível, entendido como o sadismo
programado e desmoralizador do espaço do sensível, apesar de ameaçador, não faz
outra coisa senão envolvê-lo em suas próprias arapucas, armadas sem perceber que a
diferença não é perigosa.

 

 

Josué Mattos

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