Eloá Carvalho, Júlia Milward, Piti Tomé, Letícia Lopes

Afinidades eletivas

18/05/2017

Afinidades eletivas

 

O silêncio e o diálogo são escolhas. E, se optamos por uma conversa, eleger as palavras e imagens que doamos e que recebemos pode ser um passo para a transformação. Mudar a partir de um encontro é morrer um pouco. Mudar a partir de um encontro também é poder inventar a possibilidade de renascer mais íntegra e mais profunda. Afinidades eletivas começou com esse desejo: o de que, além de uma exposição coletiva, a aproximação entre duas duplas de artistas pudesse gerar um caminho de enriquecimento e transformação para cada uma das quatro.

Piti Tomé formou uma dupla com a gaúcha Letícia Lopes. Os encontros presenciais ou pelo Skype enveredaram por temas como o filme Solaris, de Andrei Tarkovski, e as camadas que se acumulam e se sobrepõem ao longo de um processo de criação.  O diálogo gerou propostas autônomas para a mostra, como se o contato entre suas poéticas fosse uma espécie de mola propulsora. Elas não se misturaram efetivamente, mas voltaram para si mesmas e para seus pontos de interesse dispostas a desbravar horizontes. O que se vê na galeria são duas propostas cosmogônicas, que dão formas distintas para o desejo de catalogação, de acúmulo e de sedimentação de signos. Piti apresenta dois trabalhos: uma instalação que reúne objetos e imagens projetadas, que abre uma nova vereda para seu trabalho; e uma espécie de diário, que dá outra encarnação para sua pesquisa em fotografia, evidenciando que o pequeno gesto pode ser a revolução que dá sentido aos dias, que movimenta nosso calendário.  Já Letícia tirou partido da ideia de acúmulo para criar pinturas fronteiriças entre a tela e o objeto, entre a pedra e as galáxias. A criação dessas telas-espelho fez com que a artista ampliasse sua relação com a abstração e com o acaso, já que, embora minucioso, o processo de acumulo de tinta na tela que se sobrepõe a todas as outras, criando buracos negros e vias lácteas, não pode ser totalmente controlado. Em comum, a dupla tem o apreço pela fantasmagoria. Se a relação de Piti com a fotografia sempre evidenciou a imagem capturada pela câmera como uma espécie de esquife, Letícia apresenta suas pinturas como um espelho-vórtex que engole o que está em volta, lembrando ainda que as estrelas que vemos são apenas o lastro de corpos celestes que já desapareceram. O trabalho de Letícia lembra que toda constelação é heterogênea, já que reúne estrelas de naturezas e idades distintas.

É isso que nos leva ao encontro entre Eloá Carvalho e sua dupla, a artista Julia Milward, que tem raízes profundas em Brasília e hoje reside em São Paulo.  As duas optaram por um exercício criado a partir da leitura de um texto do escritor Georges Perec.  Iam para praças no mesmo dia e no mesmo horário, anotavam suas impressões sobre a paisagem, os frequentadores, a atmosfera daqueles lugares. Fizeram isso repetidamente, Julia em sua vizinhança paulistana e Eloá no Rio. Depois trocaram seus relatos: uma ficou com o texto da outra e se dispôs a produzir imagens em um tamanho pré-estabelecido, ora arranjadas como dípticos na exposição. Se o diálogo entre Piti e Letícia significou propulsão horizontal, bumerangue a fazê-las voltar, modificadas, ao seus universos; o encontro entre Eloá e Julia foi amálgama, simbiose, salto de mãos dadas no abismo.  Eloá não precisou deixar de ser ela mesma ao dizer “sim” para esse casamento: em cada díptico, aparece com muita força seu gosto pelos vazios e pelo branco, pela criação de uma área imantada que envolve todas as coisas representadas – energia dos ausentes. O jogo entre positivo e negativo e o apreço pela silhueta, que às vezes transforma a pintura em carimbo ou estampa, também estão ali. Julia não teve que dizer “não” para si ao abraçar essa união instável: a coleção de duplas que formou com sua dupla destaca ainda mais o seu gosto pelo inventário, vertido em invenção a partir do modo que ela arranja as imagens pesquisadas na internet. A falta de foco também chama a atenção para a importância da opacidade e de certa bruma no trato que a artista faz dos arquivos: catalogar é escolher aquilo que vai morrer e o que vai viver. Arquivar é nublar e o trabalho de Julia tem aproximado a fotografia desses índices de indeterminação, construindo poesia visual nas lacunas deixadas pelo impreciso. O mergulho das duas artistas nessa jornada partilhada aprofunda a relação de ambas com a narrativa literária e, mais do que isso, funde os processos de produção de imagem e apropriação verbal/texto em um mesmo desejo de ficção.

A montagem dos trabalhos tirou partido das quintas do espaço expositivo, fazendo com que a aparição dos trabalhos no acontecimento que é uma exposição também enfatizasse os pontos de encontro entre as paredes, destituídas de sua imagem de “folha em branco”, independente, para que se enfatizasse as interseções com os outros planos.“Eu não sou eu e nem o outro/ Sou qualquer coisa de intermédio”, escreveu o poeta português Mario de Sá-Carneiro. Estar junto é saber se despedir um pouco de si, para poder inventar um novo mundo. Temos precisado muito desse adeus.

 

Daniela Name

 


  • Júlia Milward e Eloá Carvalho


  • Eloá Carvalho e Júlia Milward


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